Capítulo 1 – Estrada de Sombras
A chuva caía fina quando Isadora cruzou os limites de Cascavel. Seu rosto, refletido no espelho retrovisor, mostrava mais do que cansaço: havia algo quebrado ali, algo que as paisagens exuberantes do Paraná não conseguiam curar. Ela fugia — não de alguém, mas de memórias. A viagem às Cataratas do Iguaçu era, supostamente, um recomeço.
Parou no pequeno consultório do Dr. Elias, indicado por uma senhora na rodoviária. Queria apenas um conselho: a melhor rota para as Cataratas. O médico, um homem de olhos fundos e voz baixa, a fitou como se já soubesse quem ela era.
— Evite a BR-367 — disse. — Há coisas naquela estrada que não pertencem a este mundo. E se precisar parar… não entre no Hotel Mirante da Neblina.
Isadora riu nervosamente.
— O senhor está falando de fantasmas?
— Estou falando de arrependimentos que andam à noite.
Capítulo 2 – O Atalho
Contra sua intuição, contra o olhar vazio do médico, contra a lógica, Isadora entrou na BR-367. O GPS dizia que era o caminho mais curto. A chuva engrossou, e a neblina engoliu o mundo à sua volta. Por horas, parecia que não havia mais tempo, apenas curvas e vultos entre as árvores.
Foi quando o carro engasgou e parou. Sem sinal no celular. Sem carros por perto.
Do outro lado da estrada, o letreiro quase apagado: Hotel Mirante da Neblina.
Capítulo 3 – O Hotel
A recepção era tomada pelo cheiro de mofo e madeira antiga. A recepcionista, uma senhora silenciosa, entregou-lhe a chave sem dizer uma palavra. Havia algo nos olhos dela… algo que parecia ter visto demais.
Isadora encontrou o quarto 203. Pequeno, frio, mas limpo. Na janela, a névoa parecia respirar. Foi então que ele apareceu.
— Primeira vez por aqui? — disse o homem. Alto, charmoso, com olhos que pareciam esconder incêndios.
— Isadora — respondeu ela.
— Samuel — ele sorriu. — Esse lugar… gosta de visitantes curiosos.
Capítulo 4 – Ecos
À noite, o hotel se transformava. Passos no corredor. Sussurros atrás da porta. Vozes que chamavam seu nome. Isadora tentou ignorar, até ver, no espelho do banheiro, a figura de uma mulher encharcada, os olhos esbugalhados, parada atrás dela — e quando se virou, não havia ninguém.
Na manhã seguinte, tentou ir embora. Mas o carro… sumira. E o hotel parecia… maior. Corredores que não estavam ali antes. Portas que levavam a paredes. Um quadro com seu próprio rosto pintado, envelhecido, no fim do corredor.
Samuel apareceu ao seu lado, como se tivesse lido seus pensamentos.
— Você já esteve aqui antes, não esteve?
— Eu… não me lembro.
— Memórias têm o péssimo hábito de nos encontrar.
Capítulo 5 – O Jogo
Isadora começou a lembrar. A BR-367. Uma noite, anos atrás. O acidente. Um homem. Gritos. Sangue. Corrida.
Ela correra.
Abandonara alguém.
Samuel a olhou com olhos vazios.
— Você me deixou naquela estrada, Isadora. Eu gritei por você.
O hotel gemeu, como se estivesse vivo.
— Isso não é real! — ela gritou.
— Realidade é uma escolha — disse ele, com um sorriso que não tocava os olhos. — E você escolheu esquecer.
Capítulo 6 – Revelações
O Dr. Elias apareceu. Simplesmente surgiu no corredor. Mais pálido. Mais velho.
— Eu tentei avisar. O hotel só aparece para quem tem contas a acertar com os mortos.
— Você sabia?! — ela gritou.
— Eu ajudo almas… a lembrar. Mas o resto… é com eles.
Samuel tocou seu rosto. Mas a pele dele estava fria como gelo.
— Eu morri naquela noite, Isadora. E você viveu com a mentira.
As portas do hotel começaram a bater. As luzes piscavam. A recepcionista, agora flutuando, repetia em voz baixa: “Ela precisa pagar… ela precisa pagar…”
Capítulo 7 – A Escolha
Isadora correu. Corredores se estendiam como labirintos. Portas se abriam para abismos. Ecos de sua própria voz em pânico. Até que encontrou um espelho no salão principal. E dentro dele, viu: o acidente. O corpo de Samuel no asfalto. Ela fugindo.
Ela caiu de joelhos.
— Eu… sinto muito.
— Sentir não basta — respondeu Samuel, agora ao lado dela, com olhos vazios e uma ferida aberta no peito.
Mas então, ele estendeu a mão.
— Ou você fica… ou você se lembra.
Ela a segurou.
Capítulo 8 – Despertar
Acordou na beira da estrada. BR-367. O carro, ligado. O hotel… não existia mais. Apenas mato e uma placa caída.
Chorou. Chorou como há muito não chorava.
Na noite seguinte, apareceu no consultório do Dr. Elias. Ele apenas assentiu, como se tudo estivesse no lugar.
— Você se lembrou, não é?
— Sim.
— E agora?
— Agora… eu preciso seguir. Mas nunca esquecerei.
Epílogo
Semanas depois, outro viajante passou por Cascavel. Perguntou sobre a melhor rota para as Cataratas.
Dr. Elias o encarou por um momento.
— Evite a BR-367.
— Por quê?
— Porque às vezes… a estrada leva você de volta ao que tentou enterrar.
O viajante riu.
E entrou na BR-367.
autor vagner dias