A poeira dançava no ar, dourada, etérea, como se carregasse segredos de outros tempos. A capa do livro era de couro vinho, ressecada pelos anos, a textura áspera sob os dedos curiosos. Na primeira página, apenas: 1998. Um ano que ecoava promessas e sombras.
Capítulo 1 – Os Olhos que Chamam o Abismo
Ele surgiu na cidade como uma lenda sussurrada, um forasteiro com a aura de quem já viveu muitas vidas. Alto, o cabelo de um loiro deslavado pelo sol, os olhos de um azul cortante, quase predatório. Havia uma cicatriz fina acima da sobrancelha, uma história não contada que só adicionava ao seu charme perigoso. Seu sorriso era um convite ao abismo, uma promessa de emoções intensas e talvez, de destruição.
Ela, com seus dezoito anos recém-completados, era a personificação da primavera. Morena, a pele cor de jambo, os olhos grandes e inocentes ainda guardavam a esperança intacta. Vestia um vestido florido e caminhava pelas ruas de paralelepípedos com a leveza de quem acredita em finais felizes. Quando seus olhares se cruzaram, em meio ao burburinho da feira de domingo, o mundo pareceu emudecer. Uma corrente elétrica invisível os conectou, um instante eterno onde apenas eles existiam.
Apesar dos olhares de reprovação dos mais velhos, dos sussurros maldosos que já começavam a circular, ela se sentiu irremediavelmente atraída por aquele homem que exalava mistério e uma tristeza profunda. Ele se chamava Raul.
Capítulo 2 – Os Sussurros da Cidade e as Correntes Invisíveis
A notícia do romance floresceu tão rápido quanto as ervas daninhas. A família dela, unida e protetora, logo soube do passado de Raul: sete filhas espalhadas por diferentes cidades, sete lares desfeitos, sete mães com histórias de promessas quebradas. Ele era um livro aberto, rabiscado com os erros de um coração volátil.
— Ele vai sugar sua juventude e te descartar como fez com as outras — implorou a mãe, as mãos trêmulas apertando as dela. Lágrimas silenciosas escorriam pelo seu rosto marcado pela preocupação.
— É um lobo em pele de cordeiro, minha filha. Já vi muitos como ele — sentenciou o pai, a voz rouca carregada de desaprovação e um medo palpável.
Mas o amor que nasceu entre eles era selvagem, indomável. Encontravam-se às escondidas, sob a sombra da figueira centenária no final da rua, ou no casebre abandonado à beira do rio, onde seus beijos roubados ecoavam como juramentos silenciosos. A cada toque, a cada confidência sussurrada sob o luar, ela se afastava mais da razão e mergulhava de cabeça naquele turbilhão de sentimentos que Raul despertava. Ele a olhava com uma intensidade que a fazia sentir única, especial, ignorando os fantasmas do seu passado que dançavam nas sombras.
Capítulo 3 – O Peso da Inocência Revelada
O tempo, implacável, teceu seu destino. Meses depois, um enjoo matinal, um atraso silencioso, trouxeram à tona a verdade inevitável: ela carregava em seu ventre um pedaço daquela paixão proibida.
Quando finalmente encontrou coragem para contar a Raul, em meio ao aroma doce das flores do campo, sua voz hesitava, as mãos trêmulas protegendo a vida que crescia dentro dela. Raul ouviu em silêncio, o azul de seus olhos antes tão intensos agora nublado por uma sombra indecifrável. Não houve alegria, nem surpresa. Apenas um choque mudo, seguido por uma pergunta sussurrada, quase inaudível:
— É um menino?
Ela assentiu, um sorriso hesitante nos lábios, sem conseguir decifrar a súbita palidez que tomou o rosto dele, o pavor que cintilou em seu olhar.
Capítulo 4 – A Semente da Loucura Germina na Escuridão
Naquela noite, o sono fugiu de Raul como um pássaro assustado. As paredes do quarto alugado pareciam se estreitar, os silêncios antes confortáveis agora carregados de acusações invisíveis. Em sua mente atormentada, uma lógica distorcida começava a tomar forma, alimentada por velhas feridas e inseguranças profundas: homens eram sinônimo de traição, de abandono, de dor. Mulheres, em sua visão deturpada, eram a pureza, a inocência, a lealdade inabalável.
Ele nunca havia se imaginado pai de um menino. Em seu universo particular, apenas as filhas, com sua fragilidade e dependência, pareciam capazes de oferecer um amor incondicional, sem as complexidades e as possíveis traições que ele associava à masculinidade.
Uma sombra de desconfiança começou a obscurecer seus pensamentos. Ele revivia cada olhar, cada sorriso da amada, buscando sinais de uma traição que existia apenas em sua imaginação febril. A paranoia se instalou como um parasita, corroendo a tênue felicidade que haviam construído. Ele começou a evitar o toque dela, seu olhar antes tão voraz agora desviado, carregado de uma acusação silenciosa. O silêncio entre eles se tornou um abismo, preenchido por suspeitas não ditas e um medo crescente.
Capítulo 5 – A Ruptura Silenciosa e o Grito Mudo
Ela acordou naquela manhã com o corpo pesado, a alma ainda mais. O lado da cama de Raul estava frio, o lençol amarrotado guardando apenas o eco de sua presença. Não havia bilhete, nenhuma explicação, apenas o vazio lancinante de sua ausência. Ele havia se evaporado na calada da noite, levando consigo a promessa de um futuro juntos, deixando para trás apenas a dor e a incerteza.
A barriga já era um testemunho visível de seu amor, agora transformado em abandono. A vergonha a envolvia como um manto pesado, sufocando sua respiração. A cidade pequena, que antes a julgava pelas costas, agora a observava abertamente, os olhares curiosos e piedosos como facas afiadas. Ela estava sozinha, grávida, com o filho de um homem que se tornara uma figura sombria, uma lenda maldita sussurrada nos cantos.
Capítulo 6 – O Filho da Sombra e a Força Silenciosa
O menino nasceu em uma noite fria e chuvosa, o primeiro choro frágil rompendo o silêncio opressor do pequeno quarto. Ela o chamou de Gabriel, um nome que soava como uma prece silenciosa por proteção.
Criá-lo foi uma provação diária, uma batalha silenciosa contra a solidão e as dificuldades financeiras. Não havia apoio, apenas o trabalho árduo e as noites insones, embalando o filho com lágrimas contidas. Gabriel cresceu franzino, com os olhos escuros e profundos da mãe, e uma sensibilidade precoce que parecia carregar o peso da ausência paterna. Ele perguntava pouco sobre o pai, mas a sombra daquele homem pairava sobre eles como uma nuvem escura.
Capítulo 7 – Os Ecos do Passado e a Verdade Tardia
Os anos se esvaíram como areia entre os dedos. A vida, teimosa, encontrou seu caminho. Ela conheceu um homem gentil e trabalhador, um pai amoroso que acolheu Gabriel como se fosse seu. Casaram-se e tiveram mais três filhos: duas meninas risonhas e outro menino, que trouxe mais alegria para o lar.
Mas o passado, adormecido por um tempo, guardava suas lembranças. Certa tarde, enquanto organizava uma velha caixa de recordações, ela encontrou uma fotografia desbotada, amarelada pelo tempo. Era Raul, mais jovem, segurando nos braços uma de suas filhas, um sorriso hesitante nos lábios. Atrás da foto, um bilhete dobrado, a caligrafia trêmula e incerta:
“Só consigo confiar no que não pode me trair. Eu sou o monstro que criei. Me perdoe por não ter conseguido amar você da maneira que merecia.”
Lágrimas escorreram pelo seu rosto, mas não eram de saudade. Eram lágrimas de compreensão tardia, de uma dor antiga que finalmente encontrava algum alívio. Naquele instante, ela entendeu a verdade sombria: Raul nunca quis amar verdadeiramente. Ele queria controlar, possuir, e quando o amor se tornou real demais, intenso demais, ele fugiu, assustado com seus próprios demônios.
Capítulo Final – O Silêncio Depois do Fim e o Início de um Novo Ciclo
Gabriel, agora um jovem de dezessete anos, com a curiosidade inerente à sua idade, encontrou aquele mesmo antiquário em uma rua movimentada de uma cidade desconhecida. Entrou por acaso, atraído pela atmosfera empoeirada e pelo cheiro inconfundível de livros antigos. A poeira dançando no ar sob a luz fraca da janela lhe pareceu familiar, como uma lembrança distante.
Vagando entre as estantes repletas de histórias esquecidas, seus olhos pousaram em um volume solitário, sem título, com a capa de couro vinho desbotado. Intrigado, pegou-o. A data na primeira página, 1998, fez um arrepio percorrer sua espinha.
Leu cada palavra, cada capítulo, absorvendo a história daquela paixão proibida, daquele abandono cruel, da força silenciosa de sua mãe. Na última página, rabiscada à mão, uma frase simples, mas carregada de significado:
“O amor que se teme, destrói. O que se enfrenta, liberta.”
Gabriel fechou o livro com um clique suave. Naquele instante, sob a luz amarelada do antiquário, ele sentiu o peso do passado se dissipar. Uma compreensão profunda o invadiu, a certeza de que o ciclo de dor e segredo havia terminado. Ou talvez, naquele exato momento, uma nova história, escrita por suas próprias mãos, estivesse apenas começando.